A Primavera instala-nos no peito as moções da paixão e da aventura, as flores não nos deixam esquecer de que está na altura de ousar e dar um passo um nadinha mais comprido do que o costume. Tal como nos cogumelos, há que saber escolher, mas no fundo a prática é ainda mais antiga.
Gosto de rábulas e uma das minhas favoritas é de que já não há amores-perfeitos nas rotundas; estão todos nos pratos dos grandes chefs. A minúscula, colorida e frágil flor tem nas pétalas o amargo indispensável para equilibrar tanto sobremesas como saladas e tem um efeito visual notável.
Talvez por isso tenham tomado de assalto as boas mesas do mundo, embora o ponto essencial seja mesmo a festa das cores. Violeta, amarelo, laranja, azul e branco, apelam aos sentidos, ao mesmo tempo que nos põem bem-dispostos. Na boca, o sabor não é impositivo, acompanhando uma diversidade considerável de proteínas e temperos sem lhes deturpar a função.
Há uma flor que venero, pelo quanto ajuda na leitura de tudo o que é marítimo: a flor da borragem. Já todos a viram pelo menos uma vez na vida – ou no prato -, é muito aromática, e na boca, quando colhida no seu vigor, evoca o sabor da ostra crua. É uma delícia, e deve até comer-se antes daquilo que acompanha, que pode ir da alga marinha mais simples à lagosta cozida mais complexa. Curiosamente, também funciona bem como aromático forte na construção de pudins. É um dos “segredos” da minha versão do pudim do abade de Priscos, consegue intensificar os sabores sem os dominar nem deturpar e cumpre o desígnio das pedras de sal que utilizamos, por exemplo, em chocolate, com a virtude de aqui ser bem mais saudável e limpo em termos de perfil.
A calêndula é outra flor da minha predileção e consegue-se um óleo essencial único, a um tempo agradável e saudável. Faz uma infusão maravilhosa, com água a 80º C, efeito calmante e relaxante. Deita pétalas copiosas e densas, em tons laranja ou amarelo, já as utilizei para uma manteiga maitre d’hotel deliciosa para saltear foie gras fresco e já aromatizei mel com folhas de calêndula, com bons resultados.
Os chefs portugueses estão a utilizar muito a flor da capuchinha, que herda a força especiada – pimenta preta – que a folha já tem. Folha que, diga-se a propósito, tanto poder ser pequenina como ter o tamanho de um prato.
Já todos vimos crisântemos nas mesas dos bons restaurantes chineses, assim como todos também já os comemos, integrados em pratos de comida chinesa e japonesa; ligam bem com o molho agridoce, por exemplo.
A flor da buganvília é deliciosa quando bringida, ou seja, escaldada e logo de seguida imersa em água gelada, perdendo os amargos que o cru sempre contém. Adora mel, se possível também os favos diretos da colmeia. Mas de todas, a mais comestível e sempre original é a pétala de rosa, facto incontestável e independente do tipo de rosa, o acetinado que se sente na ponta dos dedos quando se toca é plenamente correspondente à sensação suave e aveludada no palato, onde sabemos que está o nosso sentido do tato interior. E todos sem excepção nos deixamos seduzir, mesmo quando não sabemos que ali está, pelo odor das madressilvas – ou maias – de noite no pico da primavera.
Ao longo da história, flores inteiras, pétalas apenas ou caules foram sempre estruturantes na alimentação humana, e todas sem excepção têm uma aplicação farmacêutica. O bem conhecido lema de Hipócrates – “que o teu alimento seja a tua medicina, e que a tua medicina seja o teu alimento” – cabe inteira e plenamente no universo das flores comestíveis, de que ainda vamos na Pré-História. Não tenho dúvida alguma de que na célebre mala do segredo com que o abade de Priscos resolvia e recuperava cozinhados como que por magia continha uma enorme série de óleos essenciais e extractos de pétalas por si próprio criados.
Aprendi muito com uma grande senhora das plantas e flores, Graça Saraiva, em tempos nas Ervas Finas de Trás-os-Montes, em Vila Real, depois um pouco por toda a parte, agora sobretudo no maravilhoso projecto Sublime, na Comporta. Oficia ali como residente Ana Marques, entre ambas existe consonância perfeita, e dir-se-ia que falam fluentemente com as plantas. Foi com Graça Saraiva que criei segurança na abordagem livre ao assunto das flores, e sempre me impressionou a simplicidade com que as abordou e me mostrou. Evangelizou por muitas e grandes cozinhas, e numa dessas intersecções temporais conheci-a, tinha o chef Rui Paula aberto o DOC, no Douro, há muito pouco tempo.
A flor da carqueja, milenar na história da alimentação, era a única certeza absoluta que eu então tinha, já agora quanto ao melhor arroz; não há igual no nosso receituário. Mostrou-me a flor da curgete, e como pode ser recheada e assada, servida depois como petisco ou entrada; o hibisco, de que se produz há séculos uma compota natural; a beldroega de inverno, incrivelmente apetecível e identificável; entre tantas outras.
Foi a única especialista profunda em plantas, flores e especialistas que vi trabalhar com os chefs nas suas cozinhas, aperfeiçoando-lhes alguns pratos e noutros casos eliminando-lhes erros. Há que dar ouvidos ao que os sábios dizem e pelo menos tomar nota dos seus ensinamentos.
Créditos da Notícia: DN ócio